COMO ENSINAR FILOSOFIA?
Obviamente, a resposta a essa questão está ligada ao objetivo que pretendemos realizar. E é claro, como na Filosofia tudo está sempre sob exame, do que nós estamos chamando de “ensino” e de “Filosofia”. Por exemplo, se alguém julga que Filosofia é uma tradição de pensamento que nasceu na Grécia Antiga e que se espalhou pelo Ocidente e que se mantém viva até os dias de hoje, (e, por conseguinte, o que pensaram os indianos, árabes, chineses, maias, etc, não é Filosofia), pode imaginar que ensinar Filosofia seja ensinar a história dessa tradição. E por que seria importante aprender essa tradição? Como a arte, a música, a história, a filosofia seria parte da cultura ocidental e se quisermos preservá-la, temos que passá-la adiante. Essa seria uma visão um tanto elitista da Filosofia, como diria Pierre Bourdieu, a Filosofia, nesse caso, seria parte do capital simbólico, uma forma de se distinguir socialmente.
Outra abordagem para questão seria partirmos não do que os jovens podem fazer pela Filosofia, mas do que ela pode fazer por eles. Ou seja, qual o papel pedagógico da Filosofia no Ensino Médio? E por pedagógico, entendemos o papel educativo, ou seja, no que ela pode contribuir para formação de nossos jovens alunos. Alguns podem objetar que essa é uma pergunta instrumentalista, como se a Filosofia tivesse que ter uma “função” além do que ela é em si mesma. É certo que estamos tirando a “aura” da Filosofia ao colocá-la nesses termos, mas ao nos depararmos com a realidade do Ensino Médio nas escolas públicas, acaso seria praticável e justificável apresentá-la como atividade diletante e desinteressada?
Muitos professores ignoram que alguns de seus alunos sequer sabem ler e escrever e que outros tantos o fazem precariamente. Eles se convencem que sua proposta de ensino é ótima e que ele é igualmente um excelente conhecedor da mesma. E que se os alunos forem atentos as suas aulas tudo se resolve. Como os resultados custam a aparecer ou são francamente desabonadores, só pode ser por culpa dos alunos que não aprendem porque são preguiçosos, vulgares, desatentos, etc.
Isso leva a uma incomunicabilidade entre professor e alunos e reforça certos estereótipos sociais como o de “filosofia é coisa de doido”; incompreensível ou aula livre em que não se ensina nem se aprende coisa alguma. Portanto, não considero que muitas propostas de ensino de Filosofia sejam ruins, somente inadequadas.
Voltando a questão inicial, creio que o papel da Filosofia no Ensino Médio é fortalecer a capacidade de argumentação falada e escrita dos alunos e, se possível, transferir essa habilidade para outras disciplinas. Mas por que a Filosofia e não produção de texto ou linguagem, seria a disciplina mais adequada para isso?
Porque a Filosofia é a disciplina que faz do pensar sua forma e conteúdo. Ela não se dirige a nenhum objeto em particular, mas trata do geral. É por isso que Ch. S. Peirce chama a Filosofia de Cenoscopia, ou estudo das propriedades gerais. Para saber mais sobre essa concepção de Filosofia veja o texto: O que é Filosofia?
No entanto, não basta estar em contato com a Filosofia para apropriar-se de seus modelos de pensamento, é preciso exercitá-la através do diálogo filosófico. Partindo do pressuposto de que a linguagem modela o pensamento. Os alunos melhoram a argumentação quando são submetidos à prática dialógica. Na prática dialógica alguns efeitos pragmáticos emergem como resultado da necessidade de realizar uma fala organizada em comunidade. Por exemplo:
- a necessidade de se fazer entender pelos ouvintes – clareza.
- apresentar razões para o que se diz;
- pensar exemplos ou contra-exemplos;
- perceber possíveis inconsistências e contradições na própria fala e na dos outros.
É claro que nenhum desses resultados aparece se a fala não for organizada dialogicamente pelo professor que deve estar atento a cada fala dos alunos, colocando questões e problemas para que estes possam reexaminar seus pensamentos. Além disso, o professor deve cuidar para que o diálogo siga seu curso na investigação do problema evitando a dispersão e a mera manifestação de vivências pessoais sem encadeamento entre si nem evolução em alguma direção. O diálogo não pode confundir-se como mera conversa ou debate em que cada um manifesta suas impressões sobre um determinado tema. Em um verdadeiro diálogo, somos conduzidos através do pensamento e, embora nem todos estejam conscientes do rumo que o diálogo está tomando, pelo menos um – o professor – deve tê-lo muito claramente. Isso não quer dizer que ele deve manipular as opiniões dos alunos ou ajustá-las ao que ele pensa, mas cuidar para que todo aquele que argumenta seja respeitado em suas razões e responsável coletivamente pelos resultados alcançados comunicativamente.
Para que o diálogo possa existir, ao invés de um simples monólogo do professor, é preciso que os alunos se interessem pelos problemas filosóficos apresentados. Por isso, os problemas devem se apresentar a partir da experiência comum, ou seja, a partir das crenças partilhadas em nosso universo cultural ou “mundo da vida”, como diria Habermas. Isso não quer dizer “partir da realidade do aluno”, pois a Filosofia não lida com o particular. Mesmo porque, a nenhuma realidade humana é tão específica que não possa ser entendida ou comunicada.
Por vezes é necessário que haja uma motivação para dar contorno ao problema, para isso o professor pode fazer uso de um filme, música ou jogo. Não podemos esperar que os alunos estejam motivados, nós temos que motivá-los! O professor também poderá usar um plano de discussão ou exercício para conduzir o diálogo ou determinada habilidade cognitiva que deseje trabalhar. Isso tudo fica mais claro se olharmos como se organiza um plano de aula:
PLANO DE AULA
• Objetivo – ao final dessa aula o aluno será capaz de...
• Motivação – atrativa, envolvente
• Plano de discussão e/ou exercício
• Apresentação – texto
• Aplicação – checagem de compreensão
Por plano de aula não queremos dizer que todas as atividades se esgotem no tempo de uma aula, isto irá depender do objetivo e estratégia adotada. O objetivo deve corresponder às necessidades de suas turmas, por exemplo, você observou que os alunos ao escrever não conseguem estabelecer uma sequência lógica no texto que se apresenta como um conjunto de frases desconexas. Diante desse quadro, você pode ter por objetivo desenvolver determinadas habilidades cognitivas dos alunos, tais como a capacidade de classificação, seriação, coesão e coerência. Para poder medir se o objetivo foi alcançado ele deve ser mensurável. Objetivos vagos como “sensibilizar” ou “conscientizar”, não são mensuráveis, porque não podem figurar como objetivos de uma ação educativa. Por isso, os objetivos devem ser pensados em termos dos resultados esperados, “ao final dessa aula o aluno será capaz de...” estabelecer a diferença entre idealismo e empirismo, por exemplo. Para isso, eu posso fazer uma checagem de compreensão ou aplicação do que foi aprendido através de um exercício, redação, júri, etc.
Estabelecido o objetivo, passamos à estratégia de motivação dos alunos. Muitos professores falam que só falta plantar bananeira para chamar a atenção dos alunos. Esta é uma concepção errada do que é motivação. Pois ela ainda está centrada no ensinador e em suas qualidades artísticas e retóricas para prender a atenção do público. Quando os jovens estão interessados em aprender como passar de fase em um jogo, são capazes de ficar horas investigando. É claro, que nem sempre conseguiremos atingir o mesmo tipo de motivação, mas qualquer pessoa, independentemente da idade, se motiva quando está diante de um problema ou enigma que capta sua curiosidade. A Filosofia se torna atraente quando o aluno consegue perceber o problema e torná-lo seu. Para isso, não pode ser um falso problema, uma questão meramente retórica ou que vislumbre uma solução. Por exemplo, qual a capital de Angola, não é um problema genuíno, pois se Angola como outros países tem uma capital, não há nada de intrigante em se investigar esse caso em particular. Por outro lado, se o professor de química diz a seus alunos: “vocês conhecem o estado sólido, líquido e gasoso da matéria, quero então que me digam a qual deles pertence o fogo?” Depois de uma ou duas tentativas, os alunos logo perceberam que estão diante de um problema genuíno e que algo de enigmático está por trás da questão. Ora, no caso da Filosofia isso é ainda mais fácil de fazer, já que a maior parte das questões filosóficas permanece em aberto.
Apresentado o problema, os alunos podem ser convidados à investigação do mesmo através de um plano de discussão ou exercício, em duplas, grupos ou a classe inteira de acordo com as possibilidades do espaço e a estratégia adotada. É o momento em que podemos perceber como está a compreensão dos alunos sobre o tema e intervir para melhorar a fala dos mesmos. Muitos professores reclamam da fraca participação dos alunos no diálogo, nesse caso, talvez tenhamos que usar outras dinâmicas, como trabalho em duplas, perguntas direcionadas através da “caixa de perguntas” entre outras estratégias, até que eles se sintam seguros para sair do formato tradicional no qual foram condicionados desde a infância.
Depois da investigação em comunidade do problema, ou antes dela, conforme o caso, passamos à apresentação e investigação sobre o texto. O professor pode optar por fazer uma aula expositiva sobre o tema para criar condições de ingresso no mesmo. Mas, é sempre melhor quando as questões surgem da leitura do texto pelos alunos. Como nosso objetivo é melhorar a fala e a escrita argumentativa dos alunos, nada melhor do que lerem para apreenderem modelos de argumentação escrita. Se os alunos leem em casa ótimo, mas não se deve contar com isso. Faça uma leitura partilhada em sala, questionando o que os alunos entenderam de cada parágrafo que acabaram de ler.
Por fim, como já foi dito, você deve avaliar o quanto do seu objetivo foi alcançado. Caso o resultando não seja muito bom, pense em estratégias de como recuperar o que não foi aprendido nos planos de aula seguintes. Não importa se isso atrasar o conteúdo, pois o conteúdo só faz sentido enquanto problemas que alimentam a investigação filosófica na sala de aula e garantem o desenvolvimento das habilidades cognitivas dos alunos.
Já que estamos falando sobre conteúdos, algumas palavras sobre o currículo. Em alguns estados do país, o currículo foi imposto pelo governo, em outros acaba se impondo pelas escolhas dos livros didáticos que se tornam hegemônicos nas escolhas dos professores. Onde não ocorre nem uma coisa nem outra, veja nossa sugestão de trabalho em Planos de Aula. Lá, o ensino de Filosofia está pensado segundo a metodologia aqui descrita e organizado por temas e subtemas. Cada tema pode durar um semestre ou um ano, de acordo com o número de aulas semanais de Filosofia. Para alunos de baixa renda, como é o caso da maioria dos alunos das escolas públicas, pode-se fazer cópia do material na escola ou conseguir fotocopiá-lo pelo preço de duas passagens de ônibus. Em todo caso, é importante incentivá-los a terem o material, pois só assim poderemos saber como anda a habilidade de leitura e interpretação dos alunos.
Caso a escola já adote um material didático específico, não tem problema. A metodologia vale mesmo nesses casos, só dará mais trabalho. Você mesmo terá que montar seus planos de aula a partir do material. Uma olhada nos nossos modelos poderá lhe dar algumas ideias de como adaptá-los a sua situação. Além disso, você poderá resolver suas dúvidas ou socializar ideias através do nosso Consultório.
Então, o que achou da proposta? Nós estamos aplicando aqui em três colégios, sendo um em Ilhéus e dois em Itabuna na Bahia, boa parte dos bolsistas têm relatado resultados animadores da proposta. Como ela ainda é muito recente, não temos muitos indicadores dos resultados, mas uma coisa é certa: os alunos estão muito mais engajados no processo de investigação filosófica hoje do que estavam antes.